Aborto
Como sabes, perdi um filho. O meu filho. Morreu com uma cardiopatia congénita grave: uma drenagem venosa pulmonar anómala total.
Quando ouvimos da equipa médica: Ana, Pedro, chegou o momento. Não há mais nada que possamos fazer pelo Lourenço… Sabíamos o que viria. Uma decisão complexa.
Iniciaram-se os cuidados paliativos após 54 dias de luta pela sua vida. Que decisão difícil… Inexplicável, contraditória, paradoxal…
Ora, dito isto:
Se falasse do Aborto como uma mãe que perdeu um filho, diria: “Ninguém tem o direito de decidir sobre a vida de um ser humano, nem os médicos, nem a própria mãe…”
Se falasse como uma mulher com um diagnóstico de saúde mental grave, talvez as frases fossem algo assim: “Tenho o direito de escolher não levar uma gravidez até ao fim quando sei que não tenho condições emocionais nem psicológicas para cuidar de uma criança… nem de mim mesma.”
Se falasse como uma mulher que foi violada, talvez diria: “Preciso de apoio… para não ser forçada a viver uma gravidez que me liga, todos os dias, ao pior momento da minha vida.”
Se falasse como uma jovem de 15 anos que engravidou, talvez diria algo assim: “Tenho o direito de crescer primeiro, de alcançar maior maturidade emocional e ser apoiada até estar pronta para educar uma criança… Não medi as consequências e quero ajuda.”
Se falasse como uma mulher que descobriu que o seu bebé carrega uma doença gravíssima, diria talvez: “Tenho o direito de deixar partir o meu filho em paz, pelo bem dele e da nossa família.”
Se falasse como uma mulher na Palestina, a ver os seus filhos a morrer, diria: “É uma injustiça profunda que quem pode ter um filho se recuse, enquanto a mim me é negado até o direito de viver.”
Se falasse como uma mãe sozinha com três filhos e sem rede de apoio e em precariedade de vida, diria talvez: “Já dei tudo de mim todos os dias… forçar-me a uma nova maternidade sem condições é um gesto de egoísmo, não de moralidade.”
Se falasse como a mulher que quer ser mãe, mas teve várias perdas gestacionais, diria talvez: “Não se trata apenas de querer ou não querer um filho. Trata-se de honrar o desejo de uma maternidade vivida com saúde, amor e dignidade. Que injusto ver mulheres grávidas a optar por um aborto quando o que menos eu quero é repetir a história de perda.”
Cada história tem a sua dor.
Cada decisão tem o seu peso.
E o que todas pedem é o mesmo:
Dignidade, escuta, empatia e liberdade.
Não há só uma realidade (reprodutiva, social, psicológica, moral)... há muitas.
A defesa do direito à escolha não impõe decisões, apenas garante que cada mulher possa tomar a sua com apoio, consciência e cuidado.
A mulher que, por razões éticas, não quer abortar, não o fará, mesmo estando legalizado o aborto.
Sinto que impedir legalmente o aborto força todas as outras a seguir em frente mesmo que isso represente sofrimento, violência ou risco. E aí sinto que se retira o único que nos salva:
A Dignidade.
A intenção destas palavras é fazer algo que raramente vemos: honra a complexidade de um tema sem cair na polarização.
Não se trata de defender ou atacar.
A minha mensagem e pedido é: OLHEMOS PARA O HUMANO!
Sim, sabemos que nem tudo o que é legal é naturalmente ético.
E sabemos que a lei existe para proteger direitos num mundo onde coexistem diferentes crenças, condições sociais, recursos. A lei não obriga a abortar.
Negar essa possibilidade é obrigar a todas as mulheres a seguir em frente mesmo que isso represente dor, risco, trauma ou injustiça.
A ética é importante.
E a liberdade e dignidade também são.
E sem liberdade e dignidade, o que resta da ética?
Este texto pode ser uma ousadia...
Falo talvez por muitas mães, que como eu, perderam filhos.
E por muitas mulheres que sofrem a tomada de decisão de um aborto por um bem maior.
Não dá para sentir o que o outro sente.
Mas podemos, no mínimo, colocarmo-nos no lugar desde onde o outro está a ver o mundo (muitas vezes, como um lugar extremamente ameaçador).
Que nos possamos escutar em respeito, e espalhar a mensagem.
Abraço sereno,
Ana Higuera